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Do trauma à glória: seis anos após morte da filha, Luis Enrique tenta levar o PSG à conquista da Europa 6m57k
Comandante do time francês precisou interromper a carreira diante da perda de Xana, de 9 anos, em 2019, mas voltou a figurar entre os principais técnicos do mundo com jeito durão 432x2p
Publicado em: 29/05/2025 | GLOBOESPORTE.COM / JORGE NATAN 5n103b
Luis Enrique é do tipo que tem pressa para vencer. Na contramão dos que pregam paciência para que trabalhos longos deem frutos, ele se cobra para que seu esforço resulte em troféus de forma rápida. Foi assim em 2015, quando conquistou a Europa pela primeira vez, na temporada de estreia no Barcelona. Pode ser assim agora, quando, no segundo ano em Paris, está perto de conseguir o que seus antecessores não alcançaram: levar o PSG à conquista da Champions League.
O técnico de 55 anos, nascido na cidade nas Astúrias, no Norte da Espanha, se acostumou a lidar com os impactos da chuva por lá desde a infância. Não à toa, procura o paralelo meteorológico diante dos altos e baixos da carreira de treinador, com sucessos e insucessos dentro de campo. Mas certamente não pôde antecipar a maior tempestade de sua vida: a morte de sua filha Xana, que, aos 9 anos, não resistiu à luta contra o câncer.
O trauma interrompeu a ascendente carreira de técnico do ex-jogador em 2019. O fez repensar o modo de encarar a vida, os problemas, mas não o fez perder a sede pela vitória. Afinal, nos momentos de alegria, Luis Enrique se sente próximo da filha. Um sentimento que ele deseja reviver no próximo sábado, quando pode ter a noite mais gloriosa de sua vida desde a perda traumática, na final contra a Inter de Milão, em Munique, às 16h (de Brasília).
- Eu tenho memórias incríveis, pois minha filha gostava de festas. Tenho certeza que, onde quer que ela esteja, ela continuará festejando. Lembro de uma foto incrível que tenho com ela, na final da Champions League em Berlim, depois da conquista. Ela colocando uma bandeira do Barça no gramado. Espero poder fazer o mesmo com o PSG. Minha filha não estará lá fisicamente, mas estará lá espiritualmente. E para mim é muito importante.
Antes do trauma
Luis Enrique foi um meia que marcou época na década de 1990, defendendo os rivais Real Madrid e Barcelona, de forma consecutiva na carreira, iniciada no Sporting Gijón. O ex-atleta da seleção espanhola jogou cinco temporadas no time de Madri, antes de rumar para o Barça, onde atuou por sete anos e acabou criando maior identificação. Tanto que se aposentou dos gramados e iniciou por lá sua carreira de técnico, no time B.
No início de sua carreira, ficou marcado pela rigidez em dois pilares na gestão do grupo: a preparação física e o código disciplinar. Avesso a atrasos, mesmo de um minuto, ele colocava a preparação do corpo dos atletas como algo fundamental para o desempenho do time. Afinal, conhecia bem até onde pode chegar o ser humano, já que foi adepto de esportes extremos após pendurar as chuteiras: disputou a prova do Ironman e a Maratona de Los Sables, quando chegou a correr por seis dias no deserto do Saara.
- O Luis Enrique é uma pessoa incrível. Entrega tudo, absolutamente tudo o que pode para o clube e para os atletas. Ele é muito direto com a gente, fala o que tem que falar na sua frente, goste ou não. E isso é muito bom, não tem rodeios. Com ele, todo mundo sabe exatamente o que tem que fazer em campo - conta Beraldo, zagueiro brasileiro do PSG.
Esse estilo foi visto como fundamental para que o Barcelona apostasse nele para uma tentativa de voltar a ter um futebol vistoso - além de buscar uma nova conquista da Champions League. Lucho, como é chamado, foi contratado diante da saída de Tata Martino, no meio de 2014. Nos meses anteriores, o espanhol comandou o Celta de Vigo em uma boa temporada e abriu as portas para retornar ao clube depois de quatro anos.
Assim, Luis Enrique, que havia deixado o time B ainda como promessa, voltou ainda como um treinador iniciante, que também havia trabalhado por um ano na Roma e não tinha títulos conquistados. Mal sabia ele que alcançaria, ainda em sua primeira temporada, o status de um comandante histórico para o Barça.
Para chegar à glória, contou com uma geração histórica à disposição, mas precisou saber fazer a gestão correta. A espinha dorsal do time que havia feito história com Pep Guardiola ainda estava lá, em meio a um debate sobre a necessidade de renovação da equipe. Messi seguia como grande líder, enquanto nomes como Xavi e Piqué enfrentavam críticas. Na frente, Neymar e Suárez eram o sopro de novidade.
Neste cenário, Lucho aos poucos precisou se acostumar com as cobranças da imprensa, muito mais intensas do que na Roma e no Celta. E mostrou seu lado irônico - às vezes impaciente - para lidar com os jornalistas, principalmente quando foi questionado sobre o sobrepeso de Luis Suárez. E chegou até a reclamar de um bocejo de um profissional durante uma coletiva, indicando que ele poderia sair da sala. Por muito tempo, se recusou a dar entrevistas individuais e trocou farpas com muitos repórteres.
- Se me oferecem um corte de 25, 30% do salário para que eu nunca mais tivesse que falar com a mídia, eu aceitaria. Eu me dou bem com vocês (jornalistas). Mas se me dessem essa escolha... Eu nunca fugi de uma entrevista coletiva. Foi uma reflexão espontânea, é a verdade - comentaria Lucho sobre a relação com a imprensa, 10 anos mais tarde, já no PSG.
O fato é que, em campo, tudo funcionou da melhor forma, e Luis Enrique fez o Barcelona ser feliz de novo. Mais do que isso: repetiu o feito de Guardiola e conseguiu a Tríplice Coroa na temporada de estreia: Champions League, Campeonato Espanhol e Copa do Rei. No começo da temporada seguinte, vieram o Mundial de Clubes e a Supercopa da Europa. E depois mais um Campeonato Espanhol e uma Copa do Rei.
Na terceira temporada, ainda bem avaliado por torcida e diretoria e lutando pelo tri em LaLiga, surpreendeu ao anunciar, com três meses de antecedência, que não iria renovar seu contrato. Alegou que não vinha conseguindo descansar, pois vivia em função do trabalho. E, por isso, precisaria de um tempo longe da profissão. A temporada 2016/17 acabou com o Real Madrid faturando o Campeonato Espanhol e a concretização do adeus do técnico.
Interrupções na carreira
Aquela foi a segunda interrupção na carreira de Luis Enrique, que já havia optado por um ano sabático ao deixar a Roma, em 2012. O procedimento ao deixar a Itália foi bem parecido com o que viria a acontecer no Barcelona: pouco antes do fim da temporada, ele avisou que não renovaria contrato e iria buscar descanso, apesar da vontade do clube de mantê-lo como treinador. Após o adeus ao Barça, ele ficou um ano parado mais uma vez.
O descanso foi interrompido por um convite da seleção espanhola, no meio de 2018, logo após uma crise histórica no comando da equipe. A Espanha disputou a Copa do Mundo daquele ano com Fernando Hierro, diretor de seleções, virando o treinador às pressas, dias antes do Mundial, diante da surpreendente demissão de Julen Lopetegui. Os espanhóis caíram na fase de grupos, e Luis Enrique foi escolhido para tentar trazer estabilidade e bom futebol ao time.
O trabalho começou bem, com vitória sobre a Inglaterra e goleada sobre a Croácia na primeira Data Fifa, mas depois enfrentou críticas pelas derrotas para os mesmos times, dois meses depois. Uma campanha que resultou na eliminação na fase de grupos da Liga das Nações por um ponto. Nada fora da curva para um início de jornada, que também teve vitórias nas eliminatórias para a Euro, no começo de 2019. Mas uma nova interrupção na carreira de Luis Enrique ocorreu meses depois.
Em junho daquele ano, a Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) anunciou que Luis Enrique pediu para se afastar do comando da seleção alegando motivos pessoais, relacionados à sua família. A federação acatou e colocou o auxiliar de Lucho, Robert Moreno, para comandar a Roja. A razão para o surpreendente afastamento do técnico só veio à tona dois meses depois, carregada de dor: em 29 de agosto de 2019, Luis Enrique usou as redes sociais para anunciar que sua filha, Xana, havia morrido aos 9 anos, vítima de um tumor ósseo.
O treinador havia pedido para se afastar do trabalho justamente para poder acompanhar o tratamento da filha. E, após a perda tão impactante, esteve longe dos holofotes por três meses - até que seu nome voltou ao noticiário, em meio a uma grande polêmica. A RFEF resolveu recolocar Luis Enrique no comando da seleção espanhola, tirando Robert Moreno do cargo. A condução do caso foi criticada pela imprensa local e resultou em um conflito entre os profissionais, que eram parceiros até então.
A federação alegou que a possibilidade de retorno de Luis Enrique existia desde que foi acertado seu afastamento, desde que o técnico manifestasse o desejo de voltar. Moreno, em meio à situação, decidiu pedir demissão - mesmo tendo ficado invicto à frente do time. Dividindo opiniões, Lucho voltou ao comando do time, pouco antes da pandemia da Covid-19 assombrar o planeta - e chegou a acusar Moreno de ser desleal ao pedir para ficar como técnico da seleção até o meio de 2020, quando seria disputada a Euro. No retorno do futebol, ele conduziu a Espanha em uma preparação de altos e baixos para a Eurocopa, que foi disputada com um ano de atraso, em 2021.
A competição colocou Luis Enrique pela primeira vez sob fortes críticas na Espanha, depois de tanto sucesso no Barcelona. A imprensa local indicava que o time do treinador tinha uma ideologia forte, de posse de bola e domínio adversário, mas pouca efetividade. Assim, os empates com Suécia e Polônia quase impediram a classificação para as oitavas. No mata-mata, mais decepção: vitória na prorrogação diante da Croácia, nos pênaltis contra a Suíça e eliminação também nas penalidades máximas diante da Itália, na semifinal.
Lucho ou a ter o trabalho questionado, com parte da imprensa espanhola refletindo se ele seria o nome ideal para comandar a Roja na Copa do Mundo de 2022. Uma campanha tranquila nas eliminatórias e a classificação para as semifinais da Nations League trouxeram uma dose de paz antes do Mundial do Catar, em meio à tentativa de um processo de renovação do elenco.
Lucho foi corajoso ao deixar de fora da convocação atletas de peso, como Sergio Ramos e Thiago Alcântara, priorizando atletas mais novos, com quem tivesse mais voz de comando. E a federação espanhola comprou a briga, investindo naquilo que o técnico pediu, incluindo um sistema de rádios que facilitassem as orientações individuais durante os treinos.
Os atletas também "fecharam" com o treinador: Morata chegou a dizer que era um soldado de Luis Enrique, e Pedri afirmou que se o comandante o pedisse para se jogar de um penhasco, ele o faria. Mas a campanha na Copa não foi nada boa, em meio à inusitada iniciativa de fazer transmissões ao vivo pela Internet em algumas noites durante o Mundial. A Espanha avançou para as oitavas de final com apenas quatro pontos, com direito a uma derrota para o Japão. E acabou caindo na primeira fase do mata-mata, diante do Marrocos, nos pênaltis, após um empate sem gols em 120 minutos.
A saída de Luis Enrique, que tinha contrato apenas até o fim do Mundial, foi confirmada logo depois da eliminação. Luis de la Fuente seria seu substituto e levaria o time à conquista da Liga das Nações e da Eurocopa nos anos seguintes - usando uma filosofia de jogo parecida com a de Lucho e muitos dos atletas que o antecessor convocava.
De novo, no auge
O fim da agem pela Espanha colocou Luis Enrique novamente no mercado - mas ele optou por só começar um novo desafio meses depois, ao fim daquela temporada. No meio de 2023, foi anunciado como técnico do PSG, que havia demitido Christophe Galtier após mais uma temporada de fracasso na busca pelo sonho europeu.
Em Paris, o treinador precisaria mostrar o velho estilo que o levou a ser contratado pelo Barcelona quase uma década antes: o pulso firme e a gestão de um elenco estrelado, com necessidade de renovação. Quando ele chegou, Messi já havia acertado sua saída, mas Neymar ainda estava lá, com futuro indefinido. As primeiras declarações do espanhol deixaram claro que ele não fazia questão de estrelas como o trio que nada alcançou na temporada anterior: ele queria um time forte coletivamente.
Quando o brasileiro acertou a saída para o Al-Hilal, da Arábia Saudita, Lucho não hesitou ao comentar que foi "favorável para todos". O estilo sincerão voltaria a ser exibido quando a novela Mbappé começou logo depois: apesar de ter renovado contrato com o clube pouco antes, o astro alimentou rumores de saída, que se concretizaria ao fim da temporada. Depois viriam à tona cenas dos bastidores da relação dos dois: Luis Enrique cobrava que Mbappé fosse o primeiro jogador a dar tudo de si para marcar o adversário, provocando-o numa comparação com Michael Jordan, ídolo do astro francês.
Na primeira temporada na França, Luis Enrique ainda contou com os gols do craque para buscar o título da Ligue1, da Copa da França e da Supercopa do país. Na Champions League, conseguiu levar o time de volta à semifinal, mas caiu de forma surpreendente para o Borussia Dortmund. A semente, porém, estava plantada.
Sem mais nenhum integrante do trio galáctico e com um elenco muito menos midiático, embora de altas cifras envolvidas. Lucho iniciou sua segunda temporada à frente do time parisiense pronto para repetir a receita: posse de bola, jogo dominante e uma enorme dedicação. Ganhou os reforços de atletas que logo viraram seus titulares: o zagueiro Pacho, o meia João Neves e o atacante Doué.
- A mudança e a evolução da equipe são evidentes. Nosso objetivo era criar gradualmente algo diferente, algo especial, algo que pudesse atrair jogadores e fazê-los querer vir para Paris. Precisávamos fazer as contratações certas. Acreditávamos no perfil de jogadores que buscávamos, como Willian Pacho, João Neves e Désiré Doué, juntamente com os Titis (formados na base). Todos eles nos ajudam - disse Luis Enrique à Uefa.
O time abriu distância no Campeonato Francês, com uma campanha que não teria derrotas até a reta final, mas derrapou feio na Champions League, com uma vitória nas cinco primeiras rodadas da fase de liga. A virada para 2025, com a chegada de Kvaratskhelia, mudou os ares: o PSG venceu seus três compromissos restantes, avançou para os playoffs e eliminou o Liverpool. Depois, bateu Aston Villa e Arsenal - e celebrou a conquista de mais uma Ligue1.
- Ele tem o grupo na mão porque é justo com todos. Nessa semana decisiva, ele não mudou a forma de trabalhar e conduzir, e diz pra gente seguir fazendo as mesmas coisas de sempre. Não precisa inventar nada a mais. Tá tudo certo. É só manter o que vinha fazendo, que foi o que nos trouxe até aqui - diz Beraldo.
Agora, um jogo separa o time parisiense de seu maior sonho, principalmente depois da compra por um grupo ligado ao governo do Catar, em 2011. Luis Enrique pode ser o responsável por conduzir o PSG a esse capítulo tão esperado. A vontade é conseguir, 10 anos depois, repetir a celebração pelo título europeu em um gramado na Alemanha. O palco não será o Estádio Olímpico de Berlim, mas Allianz Arena, em Munique. E a festa não estará completa sem Xana balançando uma bandeira. Mas a alegria será compartilhada com sua filha, lembrada da mesma forma em cada aniversário nos últimos seis anos, desde sua partida.
- Posso me considerar sortudo ou infeliz? Me considero sortudo, muito sortudo. A minha filha, Xana, morou conosco durante nove anos maravilhosos. Temos mil lembranças dela, vídeos e coisas incríveis. Minha mãe dizia que não poderia ter fotos dela. Até que cheguei em casa e disse: "Por que não há nenhuma foto de Xana? Mãe, você tem que colocar. A Xana está viva". Não no plano físico, mas no espiritual, porque todos os dias falamos dela, rimos e lembramos dela. Penso que a Xana ainda nos vê - disse Luis Enrique em documentário sobre sua vida.